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Foto: Divulgação |
O automobilismo sempre foi e talvez sempre será um ambiente
elitista, pelos altos custos que tem e como quem pertence a esse universo é
privilegiado, em qualquer aspecto que você escolher. Como em tudo que nos
rodeia, é um recorte da nossa sociedade, principalmente no aspecto social e
econômico. A famosa bolha.
Como não poderia deixar de ser, o público alvo sempre foi
selecionado para quem tem o poder aquisitivo de comprar os caros pertences e
frequentar os lugares do automobilismo, até porque o circo precisa ser pago.
Manter toda a estrutura e o glamour tem um preço que não é acessível para o
cidadão médio. E isso sempre foi institucionalizado pela F1, principalmente na
gestão Bernie Ecclestone. O aceno ao Oriente Médio não era somente político e a
atual gestão, a moderna Liberty, mantém o mesmo caminho: em tempos de
pós-Covid, a conta precisa ser paga.
Nos últimos anos, é perceptível uma mudança de público que
“engaja” (termo da moda) e se interessa pela categoria. Se antes eram raros os
malucos que gostavam de ver carros fazendo vrum num domingo onde o mais
importante é o carro, agora vimos que é um fenômeno que vai muito além do
alcance padrão institucionalizado do homem de alto poder aquisitivo.
Os motivos? São bem evidentes. A Liberty, americana, sabe
atrair e tornar a F1 em um espetáculo, mesmo na era Mercedes sem graça. A série
da Netflix trouxe a dramaticidade e interessou muitas pessoas que talvez
olhassem pra categoria de forma torta, ou talvez nem conheciam o esporte mesmo.
E o público da Netflix não abrange somente homens de alto poder aquisitivo,
muito pelo contrário.
Outro motivo evidente é Lewis Hamilton. Sempre famoso por
andar com as celebridades, o sucesso esportivo, o carisma, a representatividade
e as atitudes extrapista trouxeram muitos admiradores, principalmente quem não
acompanhava a categoria. Hamilton é o pacote completo: o piloto supercampeão e
a pessoa supercampeã, exemplo, que entendeu o que é e o que representa graças a
maturidade dos últimos anos. Pessoas que a F1 não fazia questão de ter como
público alvo enxergam Hamilton como um exemplo óbvio: o primeiro piloto negro
na categoria e, para muitos, o maior e melhor da história.
O universo da representatividade trouxe também as mulheres
como protagonistas, cada vez mais exercendo funções importantes nas equipes, na
parte mecânica, estratégica, engenharia, entre outros. E as fãs, claro. Quem
acompanha as redes sociais se surpreende com o alto engajamento feminino e
muito bem embasado na categoria, principalmente também na presença de público
em Interlagos.
O automobilismo, assim como os esportes de combate, tem no
público alvo consumidor talvez a mais evidente expressão caricata do “macho”.
Ainda não há pilotas na F1, mas o desenvolvimento da W Series permite também
que as mulheres possam estar nos monopostos como protagonistas, assim como
algumas pioneiras conseguiram vaga no grid nas décadas anteriores.
Recentemente, até chefe de equipe nós tivemos, através da Monisha e de Claire
Williams.
As diferentes culturas e a imersão de públicos e
estereótipos não pertencentes a F1 “raiz” é um choque para a zona de conforto e
para uma geração mais antiga, é claro. Comportamentos que seriam normais no
passado hoje não são mais toleráveis. São os tempos que vivemos. Quem não
entender, respeitar e se adaptar, fica para trás.
Nelson Piquet sempre foi um anti-herói, um cara sincero que,
através da pretensa sinceridade de falar o que quer e como quer, conquistou
muitos fãs nas ditas declarações “politicamente incorretas”. Não é novidade. Os
trechos expostos falando sobre Keke Rosberg e principalmente Lewis Hamilton têm
um peso gravíssimo por se tratar de um tricampeão mundial, um dos maiores
pilotos da categoria.
Nelson nunca teve papas na língua, mas isso nem sempre é sinônimo
de ser algo positivo, como estamos observando. Bernie Ecclestone é outro que
representa o passado. Sua importância na categoria e a mão de ferro que
conduziu e transformou a F1 no que ela é hoje é inegável. Bernie é mais
importante para a história da F1 que muitos pilotos, mas os fins sempre
justificaram os meios e a F1 é produto dessa mentalidade outrora padrão do
automobilismo.
Longe de querer tirar a importância e a arrogância de
ignorar e esquecer quem tanto fez para o esporte, mas é evidente que
comportamentos e frases que estamos lendo não são mais toleráveis. Se eram
antes, já passou, devemos olhar para frente e mudar a mentalidade.
Juri Vips na semana passada e Kyle Larson na Nascar, onde
inclusive é o atual campeão, foram outros exemplos de frases e brincadeiras
racistas. Larson foi punido e voltou, caiu para cima e foi campeão. Vips saiu
da Red Bull mas continua na F2, apesar dos protestos públicos da categoria. É
um erro que custa uma carreira, obviamente.
A questão não é sobre segunda chance ou julgar de cima sobre
os erros alheios. Não é o meu papel, mas o comportamento errático está presente
até entre os profissionais de imprensa. Ninguém é santo. Mais importante do que
mostrar descontentamento, indignação e textos falando sobre como é possível
reverter isso são as práticas assertivas. Como fazer isso?
A cada caso, é sempre o discurso padrão de repúdio e “não
passarão”! A verdade é que eles passam e repassem, a consequência é quase
inexistente. Alguns caem para cima. O pior erro é ser definitivo, é preciso
equilíbrio, tempero, mas ainda assim uma definição.
Esse texto é mais um gerador de lero-lero sobre os
acontecimentos diários de racismo, machismo, homofobia, estupro e tantas outras
coisas que estão ao nosso redor, nos indignamos, mas as coisas demoram para
mudar, e quando mudam.
A esperança na mudança de mentalidade, escrevendo
especificamente sobre o automobilismo, está justamente nos novos fãs e
consumidores desse universo. Um toque de frescor e diversidade a um estigma.
Não sei como escrever isso, mas os choques de geração, criação e até as
diferenças socioeconômicas serão mais constantes agora, onde essa área de
convívio ainda é inédita.
Com o passar do tempo, a minha torcida é que algumas
situações se normalizem. Que a representatividade de Hamilton e outros
profissionais “minoritários” no esporte sirvam de inspiração para qualquer
pessoa apaixonada pelo automobilismo esteja ali sem aqueles olhares, falas e
gestos que tiram a naturalidade de viver e seguir nesse universo.
Sou cético, mas nesse caso acredito que o gerador de
lero-lero que tanto repetimos e torcemos para acontecer já está mudando, mesmo
que a passos de tartaruga, a mentalidade das pessoas. É assim que o esporte
educa e influencia a sociedade, onde a contribuição não está só no
entretenimento em si, mas também através da cidadania de nos impactar e fazer
com que esses exemplos positivos sejam espalhados pelas nossas comunidades
locais.
De grão em grão, o exemplo do automobilismo pode melhorar o
convívio e o respeito a todos nas diferentes manifestações, inclusive a
ambiental, que parece ser tão contraditório a um esporte a motor. É evidente
que tudo isso deveria ser uma obrigação das pessoas, mas até lá, é necessária
uma construção passo a passo da cidadania e da sensibilidade para com o
próximo.
Até!