terça-feira, 5 de julho de 2022

GERADOR DE LERO-LERO

 

Foto: Divulgação

O automobilismo sempre foi e talvez sempre será um ambiente elitista, pelos altos custos que tem e como quem pertence a esse universo é privilegiado, em qualquer aspecto que você escolher. Como em tudo que nos rodeia, é um recorte da nossa sociedade, principalmente no aspecto social e econômico. A famosa bolha.

Como não poderia deixar de ser, o público alvo sempre foi selecionado para quem tem o poder aquisitivo de comprar os caros pertences e frequentar os lugares do automobilismo, até porque o circo precisa ser pago. Manter toda a estrutura e o glamour tem um preço que não é acessível para o cidadão médio. E isso sempre foi institucionalizado pela F1, principalmente na gestão Bernie Ecclestone. O aceno ao Oriente Médio não era somente político e a atual gestão, a moderna Liberty, mantém o mesmo caminho: em tempos de pós-Covid, a conta precisa ser paga.

Nos últimos anos, é perceptível uma mudança de público que “engaja” (termo da moda) e se interessa pela categoria. Se antes eram raros os malucos que gostavam de ver carros fazendo vrum num domingo onde o mais importante é o carro, agora vimos que é um fenômeno que vai muito além do alcance padrão institucionalizado do homem de alto poder aquisitivo.

Os motivos? São bem evidentes. A Liberty, americana, sabe atrair e tornar a F1 em um espetáculo, mesmo na era Mercedes sem graça. A série da Netflix trouxe a dramaticidade e interessou muitas pessoas que talvez olhassem pra categoria de forma torta, ou talvez nem conheciam o esporte mesmo. E o público da Netflix não abrange somente homens de alto poder aquisitivo, muito pelo contrário.

Outro motivo evidente é Lewis Hamilton. Sempre famoso por andar com as celebridades, o sucesso esportivo, o carisma, a representatividade e as atitudes extrapista trouxeram muitos admiradores, principalmente quem não acompanhava a categoria. Hamilton é o pacote completo: o piloto supercampeão e a pessoa supercampeã, exemplo, que entendeu o que é e o que representa graças a maturidade dos últimos anos. Pessoas que a F1 não fazia questão de ter como público alvo enxergam Hamilton como um exemplo óbvio: o primeiro piloto negro na categoria e, para muitos, o maior e melhor da história.

O universo da representatividade trouxe também as mulheres como protagonistas, cada vez mais exercendo funções importantes nas equipes, na parte mecânica, estratégica, engenharia, entre outros. E as fãs, claro. Quem acompanha as redes sociais se surpreende com o alto engajamento feminino e muito bem embasado na categoria, principalmente também na presença de público em Interlagos.

O automobilismo, assim como os esportes de combate, tem no público alvo consumidor talvez a mais evidente expressão caricata do “macho”. Ainda não há pilotas na F1, mas o desenvolvimento da W Series permite também que as mulheres possam estar nos monopostos como protagonistas, assim como algumas pioneiras conseguiram vaga no grid nas décadas anteriores. Recentemente, até chefe de equipe nós tivemos, através da Monisha e de Claire Williams.

As diferentes culturas e a imersão de públicos e estereótipos não pertencentes a F1 “raiz” é um choque para a zona de conforto e para uma geração mais antiga, é claro. Comportamentos que seriam normais no passado hoje não são mais toleráveis. São os tempos que vivemos. Quem não entender, respeitar e se adaptar, fica para trás.

Nelson Piquet sempre foi um anti-herói, um cara sincero que, através da pretensa sinceridade de falar o que quer e como quer, conquistou muitos fãs nas ditas declarações “politicamente incorretas”. Não é novidade. Os trechos expostos falando sobre Keke Rosberg e principalmente Lewis Hamilton têm um peso gravíssimo por se tratar de um tricampeão mundial, um dos maiores pilotos da categoria.

Nelson nunca teve papas na língua, mas isso nem sempre é sinônimo de ser algo positivo, como estamos observando. Bernie Ecclestone é outro que representa o passado. Sua importância na categoria e a mão de ferro que conduziu e transformou a F1 no que ela é hoje é inegável. Bernie é mais importante para a história da F1 que muitos pilotos, mas os fins sempre justificaram os meios e a F1 é produto dessa mentalidade outrora padrão do automobilismo.

Longe de querer tirar a importância e a arrogância de ignorar e esquecer quem tanto fez para o esporte, mas é evidente que comportamentos e frases que estamos lendo não são mais toleráveis. Se eram antes, já passou, devemos olhar para frente e mudar a mentalidade.

Juri Vips na semana passada e Kyle Larson na Nascar, onde inclusive é o atual campeão, foram outros exemplos de frases e brincadeiras racistas. Larson foi punido e voltou, caiu para cima e foi campeão. Vips saiu da Red Bull mas continua na F2, apesar dos protestos públicos da categoria. É um erro que custa uma carreira, obviamente.

A questão não é sobre segunda chance ou julgar de cima sobre os erros alheios. Não é o meu papel, mas o comportamento errático está presente até entre os profissionais de imprensa. Ninguém é santo. Mais importante do que mostrar descontentamento, indignação e textos falando sobre como é possível reverter isso são as práticas assertivas. Como fazer isso?

A cada caso, é sempre o discurso padrão de repúdio e “não passarão”! A verdade é que eles passam e repassem, a consequência é quase inexistente. Alguns caem para cima. O pior erro é ser definitivo, é preciso equilíbrio, tempero, mas ainda assim uma definição.

Esse texto é mais um gerador de lero-lero sobre os acontecimentos diários de racismo, machismo, homofobia, estupro e tantas outras coisas que estão ao nosso redor, nos indignamos, mas as coisas demoram para mudar, e quando mudam.

A esperança na mudança de mentalidade, escrevendo especificamente sobre o automobilismo, está justamente nos novos fãs e consumidores desse universo. Um toque de frescor e diversidade a um estigma. Não sei como escrever isso, mas os choques de geração, criação e até as diferenças socioeconômicas serão mais constantes agora, onde essa área de convívio ainda é inédita.

Com o passar do tempo, a minha torcida é que algumas situações se normalizem. Que a representatividade de Hamilton e outros profissionais “minoritários” no esporte sirvam de inspiração para qualquer pessoa apaixonada pelo automobilismo esteja ali sem aqueles olhares, falas e gestos que tiram a naturalidade de viver e seguir nesse universo.

Sou cético, mas nesse caso acredito que o gerador de lero-lero que tanto repetimos e torcemos para acontecer já está mudando, mesmo que a passos de tartaruga, a mentalidade das pessoas. É assim que o esporte educa e influencia a sociedade, onde a contribuição não está só no entretenimento em si, mas também através da cidadania de nos impactar e fazer com que esses exemplos positivos sejam espalhados pelas nossas comunidades locais.

De grão em grão, o exemplo do automobilismo pode melhorar o convívio e o respeito a todos nas diferentes manifestações, inclusive a ambiental, que parece ser tão contraditório a um esporte a motor. É evidente que tudo isso deveria ser uma obrigação das pessoas, mas até lá, é necessária uma construção passo a passo da cidadania e da sensibilidade para com o próximo.

Até!

 


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